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Mulheres ressignificam o consumo de algodão

06 de Março de 2020

Uma pesquisa encomendada pela Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa) à Markestrat, em 2014, levantou que, do público consumidor de roupas de algodão no Brasil, as mulheres eram, de longe, a menor fatia. O algodão entrava em apenas 21% da composição de suas peças, contra 64% no caso dos homens e 83% na faixa infanto-juvenil. Os números sugerem diversas leituras, desde a opção pela praticidade de vestir roupas que "não amassem", sequem rapidamente ou permitam acompanhar as tendências da moda sem grandes investimentos financeiros, até mesmo a renúncia de algo que poderia ser melhor para si, em favor dos filhos. Uma escolha que vai contra a recomendação dos médicos, que, há muito tempo, afirmam que roupas, sobretudo as íntimas, feitas de algodão são a opção mais saudável para o corpo feminino.



"A região genital feminina, por ser naturalmente úmida, pede cuidados específicos, como o uso de roupas íntimas à base de algodão. Esse material permite a evaporação do suor mais facilmente que os sintéticos, o que dificulta a instalação de algumas infeções como a candidíase, que é muito desconfortável. Sendo natural, o algodão também diminui o risco de alergias. Lembrando que não basta ser de algodão, as peças têm de ser confortáveis também na modelagem", diz a ginecologista Andrea Calmon.



A preocupação com a matéria-prima das roupas e a saúde fala mais alto para as mulheres, quando se trata de produtos para os filhos. Isso explica por que o algodão está presente em mais de 80% das peças de roupas compradas para bebês, crianças e adolescentes.



Um tecido natural, confortável, que permita à pele respirar e seja também amigável ao meio ambiente era o que Raquel S. procurava ao fazer o enxoval do segundo filho.  Pelas suas contas, gastaria em torno de mil reais com fraldas de tecido e ecológicas para o caçula José, com base na experiência pessoal com o mais velho, João. As chamadas de ecológicas são laváveis, feitas de tecido tecnológico por fora com forro de algodão nas partes que entram em contato com a pele do bebê.



"Nos primeiros meses, um bebê gasta de cinco a oito fradas por dia. Considerando uma das não tão caras, que saem por volta de setenta centavos, seriam R$ 3,2 mil em dois anos e meio, tempo médio de desfralde", considera. Contudo, mesmo para a diretora de crescimento de uma startup, as cifras não foram nem de longe a razão da escolha. "Eu ficava aflita, imaginando o tanto de fralda que a gente descarta por dia com uma única criança. Cada uma delas vai demorar uns 400 anos para se degradar na natureza. Ponderei muito sobre praticidade, mas hoje vejo que é muito tranquilo. Além disso é mais saudável para o bebê", avalia.



Para muitas mulheres, entretanto, o algodão tem sido não apenas uma opção de consumo saudável e ecológico, mas uma ferramenta para a realização de sonhos. E a crescente conscientização do mercado para a sustentabilidade – social, ambiental e econômica – tem ajudado, incrementando a demanda no ponto de venda, o que reverbera em toda a cadeia produtiva. Mas nem precisa ser mulher para perceber o quão difícil é encontrar, no dia a dia, roupas em algodão que possam ir além do básico, seja para arrasar no baile ou seduzir.


Heloísa Barbante de Melo (56) e a sócia Lígia Dalla Stella (57) entenderam os sinais dessa tendência e a transformaram em negócio. Elas são donas da marca Alices, especializada em roupa íntima 100% algodão. O nome da empresa não é casual. "Era assim que nossos antigos maridos se referiam a nós por causa do nosso sonho de empreender: as 'Alices'. Para eles, vivíamos no 'país das maravilhas'", relembra. Por um tempo, elas optaram por estar fora do mercado de trabalho para se dedicar à educação dos filhos. "Nunca nos arrependemos. Hoje eles estão muito bem encaminhados, e, em 2017, quando tomamos coragem para empreender, eles nos apoiaram muito.", diz.



Heloísa e Lígia acreditaram no projeto e levaram pelo menos um ano para desenvolver os protótipos. Queriam criar peças bonitas e duráveis, para mulheres confiantes e seguras do próprio corpo. "Acreditamos que faltavam opções de roupas íntimas que unissem o conforto do algodão 100% a modelos bonitos e elegantes. A mulher confiante não busca seduzir. Ela procura conforto e bem-estar. Por isso, optamos por aliar o tecido 100% algodão a rendas e tules de excelente qualidade, somente em áreas como as laterais, que não estão diretamente em contato com as partes mais sensíveis do corpo feminino", explica. A marca é uma das 170 parceiras do movimento Sou de Algodão, da Abrapa, e a comercialização das peças é basicamente virtual, pelo Instagram @alicesroupaintima.


Foram dez anos de dilema até assumir que trocaria os quatro anos de faculdade e outros tantos no mercado, como jornalista, pela sua grande paixão, o crochê. A arte que aprendeu ainda menina com uma tia-avó era sempre a terapia para os momentos de stress da trabalhadora compulsiva. Desde os sete anos de idade, Simone Seara (42) esquecia da vida ou dava vazão às ansiedades entre linhas coloridas de algodão. Ela sempre gostou de inventar pontos novos, criando um estilo todo próprio para as bolsas, carteiras, paninhos e o que mais lhe ocorresse, no momento em que a linha começava a ganhar forma na ponta da agulha. Mas daí até chegar à "Mimo", sua primeira experiência como microempresária, foram muitos pontos e nós.



Quando o primeiro filho, Mathias (6) chegou, após algumas tentativas e muito investimento financeiro e emocional, decidiu parar o trabalho para cuidar dele. Estava quase voltando ao mercado de trabalho, mas descobriu que Cecília (3) estava a caminho, totalmente de surpresa. Dessa vez, sem nenhuma ajuda da ciência. Foi justamente com a pequena, apaixonada por adereços de cabeça como "tiaras", que veio o insight. "Um dia, peguei uma tiara velhinha e resolvi desmanchar para obter apenas o arco e encapá-lo com crochê. Ela adorou", afirma. E criou flores, ursos e mais um sem fim de bichinhos feitos à mão, com a técnica, em 100% algodão. O sonho virou projeto. "Primeiro, precisava testar a aceitação e tinha para isso o 'laboratório' ideal:  o grupo de mães da escola e o das que frequentam as atividades extracurriculares das crianças, como o futebol", conta.



Na propaganda boca a boca, os pedidos foram crescendo e Simone precisou acelerar a produção. Hoje já se prepara para dividir o trabalho. Seu turno começa sempre depois das 20h, após o dia de correrias e obrigações de uma mãe que não conta com o suporte de babás e diaristas. "Durante o dia, aproveito o tempo entre uma atividade e outra deles, e faço as tiaras de crochê até enquanto espero o portão da escola abrir", revela. O trabalho é artesanal e minucioso.  Em média, ela consegue fazer apenas cinco peças ao dia. "É muito menos do que me demandam", calcula.



O dinheiro que ganha ainda não cobre as despesas da casa, mas garante custos como os dos taxis que ela precisa tomar levar as crianças para a escola, as eventuais consultas e muitas atividades.


"Dentro da minha própria família, percebi o preconceito por querer cuidar dos filhos e trocar uma carreira por uma atividade artesanal.  No início me incomodava e respondia aos questionamentos como se devesse satisfação a essas pessoas. Depois que eu comecei a ver a importância que eu tinha na formação dos meus filhos, passei a enxergar meu papel com outros olhos: na verdade sou privilegiada de poder dispor desse tempo. Quanto ao crochê, nunca me senti tão feliz com um trabalho como finalmente me sinto agora", ela diz. Por enquanto, vendas só pessoalmente e pelo instagram @mimosimoneseara.


Empreender, para Amanda Santos (29), não foi uma opção: era a única via para dedicar tempo e garantir renda para a família, quando a maternidade chegou sem ser esperada e com alguns requisitos extras. Era 2013, quando as gêmeas nasceram. Uma delas, com uma condição de saúde que a obrigava a constantes internações, a hidrocefalia. "Via as histórias de empreendedorismo e pensei: dá certo para todo mundo e vai ser assim também comigo". Amanda criou a "Menina Galhofeira", marca de roupas infantis feitas em algodão, que ela vendia em feiras voltadas para as classes A e B. Só que, bem mais que as roupas, quem acabou fazendo sucesso foram as sacolas especiais de algodão cru que ela costurava e personalizava para acondicionar os produtos.



"As clientes falavam em sustentabilidade, em consciência ecológica, e eu não havia mirado naquilo. Onde eu moro, a Zona Leste de São Paulo, isso não era nem uma demanda. Fui pesquisar e me apaixonei pelo tema", diz. Hoje a sustentabilidade, junto com empreendedorismo, maternidade e a possibilidade de inserir a consciência ecológica nas pequenas empresas viraram o manifesto da Ideia Crua, a quinta e exitosa experiência de Amanda no mundo dos negócios. Dessa vez, as estrelas são as "ecobags" personalizadas de algodão cru.



"Ninguém conta para a gente que empreender não é só glamour", desabafa. E quando se trata de empreendedorismo feminino, isso pode ser ainda mais complicado.  "No ramo de estamparia e confecção, as posições de decisão são sempre de homens, e, para eles, eu não sabia o que estava fazendo", lembra. Durante um ano, assumia sozinha todas as etapas da produção. Hoje emprega sete pessoas em um galpão próprio, de 350 metros quadrados. "Fica em frente à escola das minhas filhas, o que facilitou bastante. Consumir produtos e serviços localmente, nos nossos próprios bairros, faz toda a diferença. Estamos sempre juntas", comemora.



Para dar oportunidade a outras pessoas da comunidade, Amanda está lançando o projeto Guilda, que vai ensiná-las a trabalhar com máquinas industriais de confecção. A ideia por trás do projeto ainda nem era um conceito nas associações de artesãos da Idade Média que inspiraram o nome da iniciativa social. Mas, como aquelas, seu objetivo é "empoderar" pessoas com interesses comuns, dando a elas mais chances e oportunidades contra o desemprego e outras vulnerabilidades. "Assim, podem ter uma renda extra e ainda estar prontos para quando eventualmente precisarmos expandir a empresa", explica. Se ela dá preferência às mulheres nesses treinamentos e nas contrações? "Não é preciso. Basicamente, as mulheres são a realidade. É com elas que trabalho", finaliza.


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